Nós chamamos a polícia no Eixão do Lazer!
Esclarecimento sobre o incidente acontecido no Eixão de Lazer, em Brasília, DF, no último domingo (12/07/2009).
Por Renato Zerbinato
Fiquei pensando em como escrever uma nota sobre o que aconteceu de fato, e no final das contas, percebi que vou mesmo escrever da forma como sempre fiz.
Como sei que a grande maioria das pessoas já está sabendo de parte da conversa, então vou logo esclarecer alguns dos pontos mais conflitantes disso tudo.
Primeiramente, não estávamos numa Bicicletada e nem em nenhuma atividade do Bicicleta Livre ou evento da Rodas da Paz, que são coletivos em que atuo com entrega e satisfação, mas que não estavam presentes, enquanto instituição ou coletividade, durante o ocorrido no Eixão, como muitos estão tentando relacionar. Portanto, deixo claro desde o começo que o que aconteceu não tem nenhuma ligação com qualquer deles, tratando-se de um fato isolado que aconteceu conosco.
Esclarecido isto, vamos ao que interessa:
Na parte da manhã, eu e mais alguns amigos nos encontramos no gramado do Eixão Norte, na altura da 113/213, para realizarmos a reunião do nosso grupo de estudos e um pique-nique, um encontro aberto, como já havia sido divulgado em algumas listas de discussão.
O encontro se deu em clima tranqüilo e descontraído e ao seu final, almoçamos juntos.
Por volta das 15:30, quando eu e mais quatro amigos trafegávamos pelo Eixão Norte de bicicleta em direção à Asa Sul, vimos o automóvel entrar na via, na altura do Setor Bancário Norte, vindo em nossa direção. Usei o apito e acenamos para que o motorista retornasse. Quando ele parou o carro, conversamos rapidamente. Explicamos ao motorista que ele não poderia trafegar de automóvel ali naquele momento. A esposa do motorista, que o acompanhava, disse que eles iriam seguir só até mais adiante. Tornamos a dizer que ele deveria retornar. Ele disse que não era de Brasília e por isso não tinha conhecimento da proibição de trafegar no Eixo Rodoviário aos domingos e feriados. Compreendido isto, dissemos que agora que o motorista já havia sido informado da proibição, deveria dar a ré e deixar da via. Somente aí a situação se tornou tensa.
Insistindo em seguir adiante pelo Eixão, o motorista engatou a primeira marcha e, numa tentativa de nos intimidar, avançou para cima de nós, freando bruscamente quando estava a uns 30 centímetros de distância. Eu estava de pé e minha bicicleta estava logo atrás de mim, no seu apoio. Outros dois amigos estavam logo atrás.
Continuamos parados, insistindo para ele retornar. Foi então que ele acelerou novamente, não me deixando alternativa de fuga a não ser pulando sobre o capô do veículo. Ele estava usando o carro como uma arma, nos ameaçando, tentando abrir caminho à força, assim como faz um grande número de motoristas que encontro enquanto utilizo a bicicleta como meu meio de transporte no meu dia-a-dia. E, se apossando dessa arma, seguiu acelerando comigo em cima até que atingiu a minha bicicleta.
Foi nesse ponto que eu realmente perdi o controle. Em pleno Eixão do Lazer, um motorista utiliza o seu carro para deliberadamente ameaçar pessoas que se encontram no seu direito de usufruir do espaço?
Se, em ato contínuo, eu subi no capô do carro por instinto de sobrevivência, agora eu pulava sobre o teto como instinto de defesa. Naquele momento eu percebi que, se eu não tivesse feito isso, ele continuaria avançando comigo ali em cima. Pulei no teto do carro e compreendo que, apenas neste momento, cometi um erro.
Reconheço que me excedi e que poderia ter sido mais moderado - atitude, aliás, que sempre defendo nas mais distintas atuações que tenho e indico para as pessoas que eventualmente me pedem orientação.
Mas aconteceu. E infelizmente não posso alterar isso.
Quando estava no teto do carro, o motorista engatou a marcha ré e acelerou. A aceleração me desequilibrou, me fazendo cair sobre o teto. Foi então que tateei desesperadamente tentando encontrar algum lugar para me agarrar e não ser arremessado ao chão.
O motorista então parou o carro. Eu desci e telefonei para a polícia.
Quando eu ainda estava ao telefone, o motorista acionou a ré mais uma vez, sugerindo que fugiria do local. Foi então que eu corri até o carro e tentei tirar a chave da ignição para impedi-lo. Foi o único momento em que houve contato físico entre mim e o motorista do carro.
O grande problema é que, apesar de eu ter ligado para a polícia vir me ajudar porque havia alguém tentando me atropelar no Eixão, assim que a polícia chegou, foi logo se posicionando ao lado do motorista - não dando qualquer chance de que eu e os amigos que me acompanhavam e testemunharam o incidente déssemos a nossa versão sobre o que tinha acontecido - e nos repelindo, como se já tivessem decidido quais eram os “vilões” da história.
Fomos todos para a delegacia. Lá, permaneceu e se aprofundou a diferenciação de tratamento: o motorista foi tratado com cortesia, enquanto eu fui tratado com rispidez e, apesar das várias testemunhas, não tive minha denúncia considerada.
Primeiro o motorista entrou na sala do delegado para contar a sua versão dos fatos. Então eu fui chamado para a mesma sala. Ao contrário do que aconteceu com o motorista, três policiais me acompanharam até a sala. O delegado me ouviu rapidamente e em seguida me disse que eu estava detido por dano à propriedade, qualificado por MOTIVO FÚTIL. É isso mesmo: o ato de defender a minha própria vida contra uma ameaça de atropelamento foi classificado como “motivo fútil”.
A conclusão é de que eu deveria ter ficado parado em frente ao carro esperando ser atropelado? Será que apenas a morte ou ferimento grave de um ciclista seria suficiente para levar um motorista que invadiu o Eixão de Lazer e atentou contra a vida de ciclistas e pedestres a ser denunciado publicamente e condenado por seu ato irresponsável? A pergunta vai continuar sem resposta. Mas neste caso, certamente muita gente atentaria para o foco real da história, que foi a tentativa de atropelamento que acabou desencadeando a minha reação. Infelizmente, no Brasil, é assim que as coisas funcionam: é mais fácil se solidarizar com uma pessoa submissa vítima de uma violência injustificável do que com alguém que luta pelos seus direitos e que, mesmo diante da opressão, não abre mão disso.
Quero lembrar que o Artigo 170 do Código de Trânsito Brasileiro define expressamente como infração gravíssima “utilizar o veículo para ameaçar pedestres ou ciclistas”, prevendo multa e suspensão do direito de dirigir, além de haver outros dispositivos criminais possivelmente cabíveis por atentado contra a vida. Nenhum deles foi lembrado pela polícia na abordagem do caso e nem a mídia analisou este fato com nitidez.
O que está havendo, na minha opinião, é uma grande inversão de valores. Em nenhum momento levou-se em conta que, apesar de eu ter me excedido ao utilizar de minhas mãos e meus pés para defender minha vida, fui motivado única e exclusivamente pela atitude hostil, arrogante e violenta de um homem que, antes de mim, já havia perdido o seu controle, utilizando sua possante máquina automotiva para intimidar a mim e aos amigos que me acompanhavam, num ataque desproporcional e covarde. O motorista demonstrou que, por estar dentro de um carro, mesmo infringindo a lei, ainda se sentia no direito de trafegar por ali, mesmo que para isso tivesse que ameaçar a vida de algumas pessoas que ousaram cumprir seus deveres de cidadãos, sem o recurso à violência.
Ficam aqui alguns pontos para se pensar e que não foram evidenciados ou captados ainda em muitas das opiniões que tenho ouvido:
1) Por que os policiais, antes de qualquer inquérito, determinaram a minha culpa e eximiram prontamente o motorista da infração de ameaça e do crime de atentado contra a vida? A ponto, até mesmo, de insistirem que eu os acompanhasse dentro da viatura enquanto o motorista iria com sua esposa dentro de seu veículo? Queriam afirmar os próprios policiais que a bicicleta não é um veículo? Ou tratava-se apenas de condenar-me previamente?
2) Se eu chamei a polícia e desde o momento que os policiais chegaram ao local eu colaborei e narrei os acontecimentos admitindo o meu excesso, por que desconsideraram as minhas acusações e, posteriormente, me mantiveram algemado, mesmo durante o meu depoimento, na presença do advogado que me acompanhava? Estive algemado inclusive durante a assinatura dos papéis de liberação. Já o motorista que ameaçou a minha vida e a vida de outros, não esteve algemado em nenhum momento. Ele, aliás, teve testemunhas ouvidas pelo delegado: sua própria esposa e uma senhora que viu a cena de longe. Por outro lado, nenhum dos ciclistas que estavam comigo durante TODO o acontecimento foi ouvido.
3) Por que uma pessoa pode ameaçar a vida de outra com uma arma e sair ilesa, enquanto a que reagiu apenas após a ameaça, defendendo a própria vida, recebe desde o primeiro momento o papel de bandido?
Não sei, sinceramente, não sei. Os valores estão invertidos, um bem material tem muito mais valor do que uma vida humana e isso está ficando cada dia mais evidente.
Fiz o que fiz, parei o carro, conversei com o motorista e tentei alertá-lo para o fato de estar em local e horário proibidos, colocando vidas em risco, por que é isso que eu faço no meu dia-a-dia. Todos que me conhecem sabem disso. Busco de todas as formas, por meios institucionais ou não, mas invariavelmente pacíficos, a humanização da cidade. Quero que o pedestre, o ciclista e o motorista convivam em harmonia, que os cadeirantes e os portadores de deficiência tenham acessibilidade.
Reconheço que errei sim, mas somente quando me exaltei e danifiquei o automóvel do motorista. Volto a afirmar, no entanto, com muita tranqüilidade, que isso foi ocasionado única e exclusivamente pelo fato de o motorista ter acelerado o automóvel em minha direção e tentado me atropelar. Em nenhum momento houve agressão física, como alegou o motorista e foi repercutido por alguns meios de comunicação.
Estou tranqüilo, de verdade. Sei que agi com clareza e fui coerente com as minhas crenças e valores, valores esses que me fazem ser quem eu sou no meu dia-a-dia, nas conversas que tenho, nas amizades que faço, nas atividades que desenvolvo e nas cartas e e-mails que envio. Lamento apenas pelo meu excesso - que, reitero, foi ocasionado única e exclusivamente pela estupidez e violência do motorista que tentou me atropelar.
Agradeço imensamente aos meus amigos, principalmente aos que estavam comigo no local e me deram e ainda estão me dando todo o apoio necessário. Agradeço também aos amigos que estão me ligando e mandando e-mails de apoio. Espero que, em breve, consigamos esclarecer os fatos e punir o verdadeiro culpado deste incidente.
Volto a afirmar que o que ocorreu naquele domingo no Eixão Norte foi um ato isolado e assumo total responsabilidade pela minha reação à violência de um homem armado com seu veículo. Não há possibilidade de vinculação do que ocorreu nem com o projeto Bicicleta Livre, nem com a Bicicletada Brasília e muito menos com a ONG Rodas da Paz.
Minhas crenças, convicções e valores seguem ilesos.
Consciente de que o ato que decorreu de uma situação atípica não interfere na minha natureza, sinto-me plenamente capaz de seguir em frente, continuando minha luta cotidiana e continuando firme nos meus projetos, objetivos e nas minhas atividades diárias.
Espero ter esclarecido alguns pontos fundamentais e me disponho a esclarecer quaisquer outras dúvidas que surgirem.
Atenciosamente,
Renato Zerbinato