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Transporte, roupas e classe social
Conseguiremos fazer a classe média engravatada abandonar o uso do carro?
Ontem participei de uma reunião divertida num escritório de arquitetura, sobre um plano cicloviário para uma determinada região de São Paulo. Não cabe a este texto tratar disso, pois será melhor dedicar um post inteiro a essa alvissareira notícia.
O mais interessante nessa reunião a que compareci foi um dado fornecido pelo arquiteto Ricardo Corrêa (guardem esse nome, o rapaz é fera em urbanismo e tem a sensibilidade para saber que a cidade é feita de pessoas, não de monumentos), que trouxe uma informação interessante sobre o trânsito na Avenida Rebouças: os carros transportam apenas 4 mil pessoas por hora, nos horários de pico. Os ônibus, no mesmo horário, carregam 18 mil pessoas.
Analisemos melhor esse dado. O corredor de ônibus da Av. Rebouças é um corredor coletor de pequeno porte que funciona como se fosse um corredor de médio porte. Por isso vemos os ônibus enfileirados: o corredor está operando acima de sua capacidade. Se fosse um corredor coletor de porte médio, transportaria mais rapidamente os passageiros. E se seu porte fosse maior ainda, talvez até fosse desnecessária a linha de metrô que pssará por baixo desta avenida. Um sistema de corredores de ônibus pode carregar até 27 mil pessoas por hora, e o metrô chega a 35 mil.
Mas uma outra questão precisa ser levantada. Quererão esses 4 mil motoristas que usam os carros abandoná-los?
Ricardo Corrêa nos trouxe um outro dado interessante. Berlim, uma das sedes da Copa do Mundo de Futebol, em 2006, aproveitou o evento para desestimular o uso de carros. Num raio de 3 kms dos estádios, nada entrava senão pedestres e ciclistas . Num raio ainda maior, carros não entravam.
Com isso, o berlinense aprendeu a deslocar-se sem os carros. Onde antes havia ciclofaixas e ciclovias vazias, hoje há uma grande massa de ciclistas transitando.
Mas São Paulo não é Berlim. O Brasil não é Alemanha, nem Dinamarca. Somos um país tropical, a cidade é quente. Até aí, isto não seria problema, se não tivéssemos uma sociedade estratificada, estamentada, que se aproveita da temperatura para realçar os limites entre os estamentos sociais.
Exemplifico. No século XIX, entre o meio industrial inglês, surgiu o colarinho branco como marca da estratificação social. Apenas os que ocupavam altos cargos nas empresas poderiam ostentar o colarinho alvejado, pois nos postos mais baixos o contato com a fuligem fazia qualquer peça de roupa branca enegrecer em poucos minutos. A essa mesma época, as próprias necessidades do trabalho impuseram o abandono do uso da casaca em prol de uma vestimenta que era um aperfeiçoamento das roupas dos trabalhadores rurais: o terno. Se antes as calças vinham apenas até o joelho, Lord Brummel lançou a moda das calças compridas, como aquelas usadas pelos limpadores de chaminé. Mas claro, estas calças de limpador de cahminé combinavam-se com botas polidas com champagne, com paletós negros e camisas brancas com elaborados nós de gravata. Brummel, o pai do dandismo, morre em 1840, mas deixa fincadas as raízes do uso do terno como distinção de classe, como foram as unhas compridas na antiga China: o trabalhador braçal, de baixa renda, de classe baixa, não pode usar colarinhos brancos, nem manter as unhas compridas, senão não trabalha, não come, não sobrevive.
No Brasil, a distinção se faz pelo suor. Somos a última nação ocidental pretensamente civilizada a abolir o trabalho escravo. Isso há pouco mais de 100 anos. O escravo era os pés e as mãos do seu senhor. Seus braços e pernas. São conhecidas as gravuras do período colonial em que vemos escravos carregando o senhor em sua liteira, vestido como se europeu fosse, abanando-se ou sendo abanado. Acaso estivesse esse senhor andando pelas próprias pernas, suportaria o calor em sua casaca de veludo?
Vai embora a casaca mas em seu lugar fica o terno (e sua extensão feminina, o tailleur – um avanço na praticidade na época de Coco Chanel, mas um forno de Bier volante para a brasileira). Somem as liteiras, e as ruas ocupam-se de carros. O espaço externo, que pode ser frequentado pelo povo, não é a extensão da liberdade da Casa-Grande, mas da Senzala, portanto pode ser descuidado, destratado. Tal como vaticina Alexis de Tocqueville, que afirma que o maior inimigo do cidadão é o indivíduo, o individualismo do paulistano que prefere o espaço privado ao público é a negação da construção republicana, da res publica, da coisa pública, ou seja, do espaço onde a pessoa deve participar enquanto simplesmente ser humano, e não enquanto membro de uma classe social.
Sintomaticamente, o meio profissional mais resistente à flexibilização das regras rídigidas relativas às vestimentas é o setor jurídico. Assim como os juízes ingleses não apenas trajam togas, mas também as perucas brancas do século XIX, o Poder Judiciário no Brasil resiste à abolição do terno. No Rio Grande do Sul a obrigatoriedade não mais existe – apenas por uma característica particular do estado, onde a pilcha instituiu-se como traje de honra em qualquer evento não podendo o gaúcho que a traja ser impedido de acessar qualquer recinto público em razão disto – mas em outros estados permanece, de um modo mais ou menos rígido. No Município de São Paulo a rigidez é maior, e estende-se a outros setores da produção econômica. Poucos são os empresários ou executivos que não trajam o terno e a gravata.
E assim os ambientes onde se usa o terno necessariamente são refrigerados. As mulheres, mais sensíveis ao frio, sabem: onde há homens de terno, o ar condicionado está funcionando em sua máxima capacidade, ou então veremos pessoas passando mal de calor, como ocorria com freqüência nas dependências da Justiça do Trabalho quando funcionavam em antigos prédios da Rua Cásper Líbero, sem ar condicionado e com poucos ou nenhum elevador. Àquela época ficava uma ambulância de plantão no local, e não foi apenas um caso de morte por problemas cardíacos nas escadas dos prédios quentes. E sempre advogados, pois se as salas dos juízes muitas vezes possuíam ar condicionado, as ante-salas e o resto do prédio não. Esta mesma situação mantém-se inalterada em diversos fóruns do interior de São Paulo.
Diante deste panorama, não é de espantar que pessoas prefiram ficar presas dentro de seus carros. O vidro fechado com o ar condicionado ligado cria o micro-clima que permite o paulistano sobreviver usando as insígnias da classe social. Não apenas isso, permite uma maior mobilidade (questionável esse aspecto no que tange aos fatos, mas é essa a impressão que o motorista possui), e acesso a outros lugares que não acessíveis à massa sem quatro rodas. Neste sentido, esse post aqui é exemplificativo: ponto de ônibus mistura, portanto inclui, o que não é desejado pelos partidários da exclusão social.
E assim, em nome das distinções de classe, o automóvel permanece como paradigma de status social na cidade de São Paulo, reforçado pelas convenções sociais relativas ao vestir-se, ao conviver com o outro: dress c0des que reproduzem e reafirmam as hierarquias sociais que, aqui no Brasil, ainda reproduzem a estratificação dos tempos coloniais, pois vestem-se adequadamente ao clima tropical os mais pobres (com suas deselegantes mas confortáveis bermudas largas e camisetas regata), os mais ricos trajam-se como se estivessem em Dublin ou Estocolmo, mudando (refrigerando) o clima ao seu redor par fingir que estamos na Bélgica quando estamos na Índia.
Em tempo: para ficar claro, não é o automóvel ou a moda que criam as distinções de classe. Não, são apenas produtos desta mesma distinção, pré-existente. São seu reflexo, não sua causa.
Links de interesse:
Plano Cicloviário Integrado de Santo Amaro – TC Urbes
Guia Bike da Rua, do Cleber Anderson
ONU – iniciativa pelo não uso da gravata como combate ao aquecimento global
Paletós, Gravata e Shorts – New York Times
Racismo Ambiental – entrevista em 3 partes com Paulo Saldiva, professor titular da Faculdade de Medicina da USP
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